Entrei no quintal da tia Neuraci, era assim que eu chamava uma amiga da minha mãe, e a encontrei limpando um bumbo de lata, um brinquedo cobiçado naquela época, somente mais tarde fui descobrir que era meu presente de aniversário. Eu morava em Santa Albertina, interior de São Paulo e deveria estar fazendo uns quatro ou cinco anos, a cidade não tinha asfalto em nenhuma rua e em frente a sorveteria muitos palitos de picolé se misturavam à terra fofa. Eu morava na rua principal, próximo da sorveteria, e nos fundos da minha casa ficava o hospital do Dr. Joaquim, e me recordo de entrar lá duas vezes, uma vez para ver pela janelinha de vidro alguém conhecido que estava sendo operado das amígdalas ou da apêndice, não sei mesmo, e outra vez com algumas pessoas que estavam tirando do forro ninhos de pombas para fazer criação e para evitar barulho e praguinhas no hospital. O Dr. Joaquim gostava muito de animais, uma vez trouxe um cateto, uma espécie de porco selvagem, e outra trouxe uma arara que conseguiu desfolhar uma árvore todinha.
Estávamos mais ou menos no ano de 1960 e como toda criança do interior aproveitava a chuva para brincar na enxurrada, e uma vez com a mão melada de doce de leite que minha mãe tinha feito com leite condensado, para rechear um bolo, peguei um filhote de pardal que caiu do ninho, até hoje lembro do mal cheiro que sentia nas mãos, e por falar em doce de leite, tinha uma vizinha nossa que fazia doce de leite num tacho para vender, e quando estava pronto pediu para eu buscar uma xícara em casa para ela me dar um pouco, e minha mãe na inocência me deu uma xícara sem asa. Bastou eu pegar a xícara com doce quente que tive de largar, e a prova disso é que tenho uma cicatriz no pé até hoje, aliás no corredor que isso aconteceu, uma vez também eu estava brigando com um menino da minha idade, e quando eu ia andando de costas pisei numa garrafa quebrada, foi muito sangue, e eu e o menino fizemos as pazes na hora.
Meu pai fez para mim um carrinho de madeira com duas rodas puxado por uma varal, era minha diversão e eu vivia procurando uma forquilha perfeita para fazer um estilingue, e as vezes alguma novidade me chamava a atenção, por exemplo uns garotos que vinham da beira do rio Grande com um carrocinha puxada por cabras. No rio Grande as vezes íamos e usávamos a praia duma ilha, que só dava para chegar de bote, e eu ouvia estórias de pessoas que por farra roubavam e afogavam porcos criados na ilha para comer. Eram tempos tranquilos, os engraxates, na maioria moleques, arrumavam caixas de papelão e levavam na alfaiataria, os alfaiates usavam o papelão para abanar o ferro de passar roupa à carvão, e pagavam os moleques com tiras de tecido que eles usavam para dar lustro nos sapatos, naquela época era lustro, não brilho!
De vez em quando meu pai matava um porco, não da ilha lógico, e fazia morcelas e farinheiras, e a festa era grande, que para provar o tempero da farinheira, eles faziam a ferriada, uma espécie de panqueca com a massa. Tudo isso era perto do limoeiro de limão galego, tenho boas recordações quando meu pai trouxe uma cesta de vime de algum lugar, e eu a enchia de limões e saia para vender nos bares, sempre voltava com uns trocados no bolso. Meu pai gostava de caçar, e para isso comprou uma charrete com um cavalo, então saíamos pelas estradas, uma vez ele matou uns pombos e alguém veio reclamar que era dono, ele mais que depressa pediu desculpas e pagou as aves abatidas, me recordo também do cheiro da madeira serrada na serraria, o cheiro, o barulho das máquinas e o cantar dos canarinhos em meio aquele barulho, o dono da serraria tinha muitas gaiolas penduradas no teto.
Os vizinho do outro lado da casa sempre montava um presépio no natal, e isso enchia meus olhos, principalmente o lago feito com um pedaço de espelho enterrado na areia do chão do presépio, areia tirada de um monte na calçada, e eu na inocência escondi uma bola de plástico na areia da calçada e nunca mais consegui encontra-la, provavelmente alguém a pegou.
Só fiz o primeiro ano primário na escola de Santa Albertina, e quando comecei a professora era uma substituta, da qual me afeiçoei, mas quando a professora efetiva voltou da licença, não tive dúvidas, fui chorando para casa. Posteriormente essa mesma professora me elogiou por eu pronunciar os esses e erres direitinho. Um dia na hora do recreio comprei um copo de leite, mas como o leite era muito quente e não amornaram como minha mãe fazia, queimei a língua e nunca mais quis. A cidade era animada, um vendedor ambulante, não sei porque até hoje acho que era turco, cortava o dedo com um canivete para mostrar como se usava o mercurocromo, um anti-séptico de uso tópico. Nas rádios tocava a música "Cincas do Passado", composição de Claudio Barros, (ouçam no google), e na quermesse da igreja, no jogo que o coelho entra na casinha, eu ganhei um papagaio de gesso, então meus pais falaram que eu tinha muita sorte, e isso foi muito marcante, me influenciou a vida toda. Uma prenda também muito usada no leilão era uma pomba dentro de uma caixa de sapatos, com um furo na tampa que permitia ela ficar com a cabeça para fora.
No caminho de Santa Albertina para Jales tinha o córrego das Araras, e um dia nós paramos para nos refrescar e eu sentado na água com minha irmã que era menor que eu, ela tombou e caiu e eu a levantei, salvei sua vida. As vezes eu ia no sitio de uns compadres dos meus pais, e tinha de atravessar um brejo, com água correndo, lambaris e muitos pássaros cantando, acho que é por isso que eu gosto tanto de brejo e batizei minha chácara de "Brejo dos Cataventos", e saibam, lá no fundo da chácara tem um brejinho. Nesse sitio tinha uma frondosa mangueira e na época da safra ficava muito carregada. Meu colega filho dos compadres dos meus pais falou para eu pegar mangas à vontade, mas não era para deixar seu avô ver porque ele ficaria bravo. Seu avô ficava o dia todo sentado na varanda, já não andava mais. Recentemente perguntei para minha mãe qual era o problema de saúde dele, e ela respondeu que era igual ao dela, só que naquela época não se colocava prótese no joelho, e a nora dele reclamava que à noite ele não conseguia dormir e ficava batendo os dedos na cama, então como a casa era sem forro, ninguém dormia. Esse colega meu guardava embaixo da cama uma caixa de sapato com dinheiro do leite que vendia para futuramente comprar um violão, não lembro se comprou ou não. Minha mãe fazia curau de milho do milho verde que ganhava de seus compadres, e quando oferecia para meu colega, percebia sua gulodice e estranhava porque o milho vinha da propriedade deles, demorou para minha mãe descobrir que não faziam o curau porque tinham que economizar o açúcar. E quando chegava o fim de ano, todos queriam o almanaque que a farmácia distribuía, com diversas curiosidades, horóscopo, simpatias e propaganda de remédios, acho que quem imprimia os almanaques eram os laboratórios.
O primeiro álbum de figurinhas que tive foi "A Bela Adormecida", ainda visualizo os cromos e sinto o cheiro da tinta da impressão, todos trocavam figurinhas e disputavam as mais difíceis, eram crianças e adultos, viver é sonhar! Quando ganhei um par de sapatos novos, não tive dúvidas, dormi com eles nos pés, ainda sinto-os no pés! A imagem é muito nítida.
Uns vizinhos japoneses apareceram de havaianas, adorei, e minha mãe compru um par para mim em Jales, e alguém deles cantava: "japoname, japoquite, Japocairú, dontoname, dontoquite, dontocairú", não sei o que isso significava. Em Santa Albertina pedi para minha mãe um cigarro pela primeira vez na vida, nem ela fumava e nem meu pai, então ela mandou eu atravessar a rua e pedir um para um amigo português, aquele que eles se juntavam a noite para tomar vinho e comer azeitonas, assim me lembro de fumar, na verdade assoprar um cigarro em frente ao Banco Bamerindus, por isso acho que o vício do cigarro é um vício do espírito, não do corpo, e com certeza eu trazia esse vício de outra vida. O português criava um porco no quintal, como todo mundo no interior fazia, e a lata da lavagem, que são os restos de comida, com seu cheiro azedo me é familiar e traz boas recordações.
Lembro com saudades do piso da varanda, de um tijolo branco quadrado, grande e poroso, que quando era lavado ficava muito fresco, e quando minha mãe passava a roupa eu perguntava se ela estava ferrando a roupa, e quando a luz acendia eu falava que lampiou.
Na véspera do natal, meu pai foi comigo no mato para cortar capim para as renas do papai noel. No dia de natal, ele levantou cedinho, recolheu os capins e colocou no lugar cocô de cabrito. Era prova de que papai noel tinha passado. Minha emoção foi muito grande, e não me lembro que presente ganhei naquele ano, mas nunca esqueci a brincadeira.
Um dia fui com minha mãe no açougue comprar carne, e o açougueiro sugeriu que minha mãe levasse costela de porco, e disse que era porque eu gostava muito, achei interessante, talvez eu nunca tivesse tido consciência disso, mas é coisa certa, gosto mesmo!
Certa feita eu estava deitado no batente da porta da cozinha, quando uma mulher que veio do rio Grande e queira falar com minha mãe, deu um passo largo por cima sem pedir para eu sair. Eu na inocência de criança depois falei para minha mãe que a mulher estava sem calcinha, na verdade eu simplesmente não vi a calcinha. Criança não tem maldade mesmo, hoje me vejo como o personagem Zezé do livro "O meu pé de laranja lima", que para agradar seu pai cantou um verso de um tango: "Eu quero uma mulher bem nua/Bem nua eu a quero ter.../De noite no clarão da lua/ eu quero o corpo da mulher...",minha mãe não me bateu como o pai de Zezé, só achou minha observação engraçada. Eu não tinha consciência também que tinha tantas lembranças dessa fase de minha vida, uma fase de um ano até os seis anos, não lembro de antes, nasci em Santa Rita D'oeste onde meu pai tinha uma venda na frente de casa, e quando nasci era feio e enrugado, mas mesmo assim meu pai me levou para os fregueses verem e então ganhei muitas galinhas, acho que é esse o motivo de eu ser apaixonado por essas aves domésticas.
Que Deus me dê forças para que eu continue sempre sendo uma criança, que perde o sono de emoção toda vez que compra um carro novo ou uma moto nova, e sempre saiba alimentar a esperança de uma vida cada vez mais feliz.
"Nada posso fazer: Parece que há em mim um lado infantil que não cresce jamais"
Clarice Lispector